tem, mas acabou #9 | só nos resta a loucura
qual foi a última vez que você se jogou no chão? que se entregou a uma manifestação impulsiva da sua… loucura?
ainda ontem, conversava com meu analista sobre o que vem a ser a loucura. na melhor das hipóteses, é algo que merece ser pensado com cautela. vamos lá.
sou de minas gerais, estado onde ocorreu o holocausto brasileiro. minhas primeiras noções de loucura vêm daí ― não dos internos, mas de quem tornou o cenário de barbárie e genocídio "lugar comum" do hospital colônia de barbacena.
sempre quis esquecer as imagens dessa história, mas nunca consegui. são como as cenas do filme o bicho de sete cabeças que estão na minha mente há cerca de duas décadas.
embora a lembrança ainda me atormente, foi justamente isso que me fez investigar a loucura sobre outros vieses.
🔎 a news de hoje é sobre:
o medo de enlouquecer
o alívio por enlouquecer
o conforto da poesia
não sei dizer desde quando e ainda não concluí o porquê, mas foi cedo na vida que senti, pela primeira vez, medo de enlouquecer.
chega a ser comum o medo de se dissociar da realidade a ponto de se perder de si. bastante gente passa por isso em um ou alguns momentos ao longo da vida. já pensei muito sobre esse não saber-se e que impactos tem.
o que sempre me assustou mais foi o risco de ser tida como louca pelos outros, por ser entendida como completamente inadequada para a sociedade. eu sei e você sabe: muita gente foi largada em manicômios por esse motivo.
essa inadequação podia decorrer da orientação sexual, de ter opiniões próprias, de ser mãe fora de um casamento… li recentemente que "loucura é um termo inespecífico" e senti que faz total sentido.
existem várias loucuras e nem todas têm a ver com dissociar-se da realidade a ponto de não ter gerência da própria vida, de se colocar em risco ou representar risco para os demais.
dentro dessa inespecificidade e da realidade de tudo que não é literal, passamos a chamar muita coisa de loucura e muita gente de louca. no cotidiano, loucura tem outro significado.
enquanto diferentes compreensões de loucura coexistem ― e está tudo bem que seja assim ―, alguns de nós encontram alívio no não pertencer que tem a ver com níveis de inadequação considerados menos… graves (?) nos dias de hoje.
alice: chapeleiro, você me acha louca?
chapeleiro: louca, louquinha! mas vou te contar um segredo: as melhores pessoas são.
― alice no país das maravilhas
tem a ver com a liberdade — ainda que restrita — de saber, aceitar e mostrar o que somos, como somos e tudo mais. contudo, ainda que muitas subversões da norma padrão sejam aceitas, se uma pessoa adulta se jogar no chão para chorar e espernear, vai causar espanto enorme.
vez ou outra, me pego pensando: será que seria mesmo de todo ruim?
tá. não tem dúvida de que uma cena dessa seria registrada e compartilhada na internet com potencial para repercussões extremamente desagradáveis. mas vamos fingir que não.
se olhos arregalados, bocas abertas e murmúrios de surpresa fosse tudo o que pudesse acontecer, consigo imaginar momentos em que eu teria dado um gritão no meio da rua para tirar à força uma angústia presa no peito.
voltando ao alívio por enlouquecer (ou qualquer que sejam as outras formas de dizer isso), sempre penso no diálogo entre alice e o chapeleiro ao me dar conta de que loucas são as pessoas que estão bem diante de tudo o que vivemos.
aos poucos, parece que estamos criando o hábito de dizer coisas como "tô indo… também, quem é que está bem nos dias de hoje, né?". e a real é que está mesmo f0da e já faz tempo. entre as gentes que estudam outras gentes, uma dúvida latente é saber até quando vamos dar conta de tudo isso.
por ora, sinto que nos resta algumas coisas como transitar por diferentes realidades e ler/fazer poesia.
para alguns de nós, só é possível dormir ou dormir um pouco melhor, se for permitido se dissociar das realidades que nos afligem.
é como um mecanismo de autodefesa não pensar o tempo todo que tem gente em situação de rua, extremistas passando leis retrógradas no congresso ou os EUA se opondo ao reconhecimento da Palestina como estado independente.
assim, seja por alguma inadequação, por força de expressão ou por nos dissociarmos de alguma realidade que nos machuca em demasia, o que nos resta é a loucura. e a poesia.
"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim…"
― álvaro de campos (trecho do poema esta velha angústia).
só os loucos sabem.
tem pra hoje
ensaio sobre a loucura 😢
um pouco sobre a história do manicômio de barbacena e suas mais de 60 mil vítimas fatais.
dica de leitura 📚
obra de fernando sabino, o grande mentecapto, ou o "dom quixote mineiro".
loucos são os outros 😁
já conhece o diabão praddo?
acabou (ou quase)
gostou ou sentiu qualquer outra coisa que te deixou com vontade de comentar, me escreve 😄 e se você gostou muito e quiser recomendar para alguém, não pense duas vezes: só vai!
tenho pensado bastante nisso e depois do seu li mais uns outros textos que levantam a questão. isso me leva a crer que o problema não é a gente, é a situação. tive uma conversa assim com a psicóloga e ela disse que acharia bastante duvidoso não se incomodar com as coisas que acontecem e são consideradas normais. acho que eu também acabaria por duvidar do meu caráter se um dia me sentisse "normal", embora eu ache que quem se considere normal raramente olha pra si mesmo de forma crítica. enfim, até escrevi sobre isso também: sei de vários conceitos de loucura, nomes pra transtornos psiquiátricos, sintomas, milhares de neurodivergências, mas ninguém até agora me apresentou um conceito de normalidade. então a gente é diferente do que, pra ser exato? pensar nisso me relaxou um pouco. que se loucura é um termo inespecífico, por consequência, também deve ser inespecífica a normalidade.
como diz o ditado, de perto, ninguém é normal. uma dose de loucura é sempre bem-vinda.