tem, mas acabou #7 | o que fizemos de nós?
e quando foi que começamos a deturpar ideias sobre nós em busca de um conforto que a realidade não nos oferece? e a acreditar que é tudo o que nos resta?
começou a ler com a sensação de que vim falar ou tentar provocar uma crise existencial coletiva? tranquilize-se, vim falar de algo muito pior 😅
brincadeiras à parte, a conversa de hoje é menos filosófica do que parece ― embora jean-paul sartre tenha visitado minha mente tão logo defini o tema desta edição de tem, mas acabou.
quero falar de como temos vivido. do que nos fez firmar um acordo tácito com algo que nos faz mal porque nos deixamos convencer de que não há outra forma de viver.
🔎 a news de hoje é sobre:
ser descartável
estar em estado contínuo de cansaço
peter pan
eu lido com dor crônica desde a infância. ao longo do tempo, isso me fez perder muita coisa, inclusive a de me entender como uma adulta funcional.
já parou para pensar o que significa ser funcional? considerando o contexto que apresentei, ser uma pessoa funcional pode ser compreendido como dar conta de si, dar conta do trabalho, das responsabilidades; da vida.
eu sei que a gente diz coisas como "minha cabeça não está funcionando direito" e todo mundo sabe o que está sendo dito. contudo, a ideia de funcionalidade não é muito apropriada para falar de pessoas. (inclusive por ser bastante capacitista).
por definição, funcional é aquilo que foi desenvolvido para ser eficaz, para ser prático, útil; utilitário". percebe como combina muito mais com um objeto? com uma coisa? com algo sem vida?
comecei a refletir sobre isso depois de um comentário do meu analista e percebi que isso de ser funcional é algo que nos condiciona e nos faz descartáveis. porque se não somos úteis, somos descartáveis.
ser descartável, às vezes, é ir parar em alguma das sarjetas do mundo: as ruas, as clínicas de internação compulsória. é carregar o peso da “inadequação” de não ser exatamente como um ser humano funcional deveria ser.
na maioria dos casos, é ser alguém que não tem valor para a sociedade. e faz tempo que esse valor é medido em relação ao quão útil a gente é.
fomos condicionados a entender isso como normal porque é o que faz sentido para a forma como temos vivido. é por isso que até hoje não conseguimos incluir e valorizar pcds, compreender pessoas neuroatípicas, entender que o trabalho de casa é base de sustentação.

ano passado, salvei uma matéria do yahoo! que dizia, em tradução livre, que todo mundo está ficando menos produtivo e isso é um grande problema para a economia, uma vez que é algo primário para o "padrão de vida" de uma população.
se nada te incomodou aí talvez seja porque temos vivido acreditando que essa realidade a única possível. sem entender quem se beneficia de nos fazer acreditar nisso. sem perceber que o “padrão de vida” de sustentamos não é o nosso.
e aí estamos cada vez menos produtivos porque estamos em um estado contínuo de cansaço porque precisamos ser pessoas funcionais ao máximo.
do contrário, temos uma vida inferior à que deveríamos ter. do contrário, prejudicamos a economia, nos tornamos descartáveis. e temos sido infelizes.
"no momento em que você duvida da sua habilidade de voar, você cessa para sempre sua chance de fazer isso".
― peter pan
e aí você vai dizer que ninguém está infeliz porque quer. e que ninguém gosta de ter valor só quando é útil. e vou dizer que concordo. eu ~sei~ que a maioria de nós permanece nessa situação porque entende que é a única coisa possível a se fazer.
mas não é a única coisa.
você assistiu a peter pan? se lembra da cena em que sininho está morrendo e o que a salva é ter pessoas repetindo que 'acreditam em fadas', com sinceridade e confiança?
sim, estou falando de uma mudança que parece coisa de estória-para-fazer-criança-dormir, fantasia, ilusão. mas nem tudo é exatamente como parece ser, a menos que a gente não acredite que valha a pena tentar mudar.
pense nisso. se achar uma boa inspiração, pense em sartre e em sua frase célebre sobre o que fizeram de nós não ser importante, mas o que fazemos com o que foi feito de nós, sim.
há mudanças que se fazem de dentro para fora.
tem pra hoje
observação 🤓
faço tratamento para prevenir a dor, não se preocupe quanto a isso, por favor.
antídoto contra a curiosidade 🔗
eis a referida matéria do yahoo! que mencionei.
o óbvio que precisa ser dito 🗣️
esta edição de tem, mas acabou não é um manifesto contra o trabalho (embora eu preferisse ter nascido herdeira, essa preferência só existe dentro de um sistema em que o estado contínuo de cansaço da maioria enriquece a minoria).
um mimo 🎞️
para você que assistiu a peter pan, sentiu a nostalgia e quer rever a cena em que a sininho é salva (quem sabe para te inspirar a acreditar também).
acabou (ou quase)
se você gostou ou sentiu qualquer outra coisa que te deixou com vontade de comentar, me escreve 😄
e se você gostou muito e quiser recomendar para alguém, não pense duas vezes: só vai, compartilha a news!
o bizarro é que nós produzimos bem mais do que consumimos. essa matéria de jornal não está falando de economia, não num posto de vista humano, mas só perpetua a noção de "as coisas só estão bem quando números sobem". aí a coisa transborda pra existência humana. é assustador, um ciclo difícil de se livrar socialmente falando, por isso gostei dessa visão peter pan do cenário. um acredita na fada, aí mais uns, até virar um movimento coletivo e a fada sobreviver, sendo a fada nossas almas. (comentário bem raso o meu, é que o tema me perturba e me move profundamente, é difícil não escrever sobre isso por páginas e páginas sem chegar a lugar nenhum.)
Interessante como o conceito de "funcionalidade" diverge a depender do enfoque ou abordagem a que pode ser submetido. Diferentemente da psicanálise, a terapia cognitivo Comportamental adota quatro funções básicas do funções do comportamento: atenção, habilidade sensorial, tangibilidade e fuga. É importante ter em mente que um comportamento pode ser uma relação entre estas funções, e que um indivíduo disfuncional sofre, porquanto se encontra em desequilíbrio no que tange a essas funções psíquicas. É claro que também faz todo o sentido relacionar funcionalidade com adequação e assertividade: indivíduos portadores de TEA, progridem consideravelmente quando têm o apoio dessa estimulação de comportamentos cujos limites é envolver a vida prática nas questões de habilidades sociais. Não se trata de ter uma função para ser aceito, ter afeto, atenção ou pertencer. Trata-se de "funcionar" individualmente ou em convivência com o outro, de uma forma equilibrada, com trocas afetivas equânimes. Comportamentos funcionais são definidos pela TCC como aqueles que são saudáveis. É sempre muito desafiadora a convivência, né? Seja com o outro ou com a gente mesmo. Então, um cérebro psiquicamente disfuncional pode, muito facilmente, produzir relações tóxicas, de dependência ou manipuladoras. Será que eu consegui me explicar? Hahahahaha